ANTONIO NAVARRO: CARTOGRAFIA E CONTEMPLAÇÃO DA LUCIDEZ
Trata-se de olhar a luz, observar a escuridão nos seus meandros incólumes. O inextinguível inumerável enquanto pendula como sopro a poeira que molha os dedos. Nesse instante, os ruídos do mundo progridem esgotando os seus mecanismos, devastando o temerário equilíbrio das sombras, o agudo esboço de uma paisagem em queda subtil.
Talvez por isso o silêncio apenas palpite no uso do negrume que evola nas paredes onde se demora a cegueira que invada a tristeza primordial de cicatrizes. O que se entranha inaugura assim o que inscreve e transfigura difundindo o tempo como desastre ou pecado. Uma rarefacção.
Nessa subtileza, António Navarro, difunde e paralisa o que é dado em transparência fidedigna, um contorno que acentua o centro do mundo no espesso singular de um resto de terra, uma textura ardente como lâmina ou arcaica atmosfera – um estremecimento em rotação opaca. Ou lonjura.
As suas peças desentranham uma ciência antiga, um aro de assombração, vestígios do invisível que retomam a origem do fogo ou a poalha das estrelas. Breves núcleos que as mãos árduas suportam luminescentes e fecundam e estampam o implacável prumo da luz. Uma dor de dar a ver.
Nesse arrebatamento ou oferenda, António Navarro, sacramenta o corpo perdido de deus, desvenda o sensível, a solidão aquosa do ver como luxúria e júbilo magistral – uma oferenda aos ossos da língua onde lavra a oficina da luz.
Olhamos e íntimos destes vestígios sonoros inclassificáveis abrandamos o ver. Um ínfimo alento estende um halo que devolve à matéria o que se extingue no ouvido. Empenhamos a pele como polpa incontida, como mármore onde recatar o que o negro incrementa ali e pesa a nutrir-se da nossa inusitada imobilidade – é como se nos acercássemos de um abismo táctil, de um relevo de um pensamento, de um enigma que convoque o esquecimento ou a névoa da alma na sua palidez a desgarrar-se.
António Navarro faz perdurar a lentidão, o que brilha em contraluz, faz consumir o trânsito sagrado das partículas despedindo o nosso empenho de espectadores – faz comparecer a exactidão do que é perene como se uma máscara fosse uma âncora onde ocultar o rosto.
O que nos é dado ver é o sentido de perda, de um corpo em crise em confronto desagregado com o outro em deformação e em busca de um receptáculo onde encenar um fluxo de sangue, um pouco de saliva que tudo una e onde o olhar se anuncie como metamorfose acústica e seja um lugar de evidência ou morada humilde de uma mensagem sem censura nem torpor.
Esse ímpeto de luz que nos é doado é quanto basta para que preciso o mundo seja uma vibração. É como se fosse um ofício voraz ou maternidade em sigilo – um arcano que penetra o corpo como um cinzel e inunda de gravidade os músculos para que a luz daí oriunda opere e restitua ao silêncio o seu fulgor e vigília.
Com António Navarro contemplamos a clareira mais espessa da nossa puríssima solidão. Amarramos nos lábios um arrepio. Um índice que nos devolve a ignorância e o vagar da melancolia. Uma tábua implacável onde naufragar.
As esculturas de António Navarro, de uma rigorosa intransigência, transgridem o rarefeito, são como pulmões esvaziando o ar, devolvendo ao vento as sementes súbitas de uma melodia inevitável.
O silêncio é um lugar onde a luz permanece edificando feliz a lavoura das sombras, uma nudez que se espanta de vento, cintila sem ausência nem penúria, arde esvoaçando na fundura branca de uma palavra – o silêncio que António Navarro edifica recolhida a mão é uma partitura ferida, um pressentimento urdindo a morte – o sulco mais breve que ilumina a lucidez.
Outubro 2018
Jorge Velhote